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Biotecnologia
Reprogramação: o "Eldorado" da medicina regenerativa?


As questões relativas à utilização da “clonagem” continuam a estar no centro das atenções, quer seja por causa das questões éticas suscitadas, quer seja pelas potenciais aplicações biomédicas que a tecnologia em desenvolvimento promete. O método “central” a todo o processo denomina-se de transferência nuclear somática.

Esta técnica desenvolveu-se a partir dos trabalhos de Robert Briggs e Thomas King, que substituíram núcleos de ovócitos de rãs-leopardo por núcleos de células de embriões da mesma espécie, obtendo girinos saudáveis e idênticos aos das rãs dadoras dos núcleos (Robert Briggs & Thomas J. King, 1952). Mais tarde, com a finalidade de produzir clones múltiplos de gado bovino elite, Neal First e colaboradores foram os primeiros a utilizar uma corrente eléctrica para estimular a fusão de células embrionárias e ooplastos, tendo sido o primeiro grupo a produzir um clone de uma vaca (Randall S. Prather et al., 1987). Finalmente, com o objectivo de se obterem múltiplos de animais geneticamente modificados e capazes de produzir (no leite) glicoproteínas com acção terapêutica demasiado complexas para serem sintetizadas em bactérias, Ian Wilmut, com a ajuda de Keith Campbell, um especialista em ciclo celular, delineou uma estratégia para condicionar os núcleos de células adultas (cultivando-as num meio de cultura que as obrigava a “passar fome” e entrar numa fase quiescente do seu ciclo celular), e utilizar os núcleos dessas células para transferir para ooplastos, produzindo assim a primeira ovelha clonada – Dolly - a partir de células adultas (Ian Wilmut et al., 1997).

A ênfase da importância deste processo tem sido quase sempre colocada na obtenção de novos indivíduos, com toda a carga emocional negativa que tal acarreta quando se fala de “clones humanos”. Parece-me no entanto que a grande importância desta tecnologia é que ela é uma das formas de se obter algo, que noutros organismos (por exemplo, nas plantas) é relativamente simples, mas que nos seres animais se mostra bastante mais complexo: “des-diferenciar” células adultas de forma a ser possível a obtenção de células pluripotentes, capazes de se diferenciarem em células de qualquer tecido. Este desiderato constitui para a medicina regenerativa uma espécie de “Eldorado”: o acesso a células não diferenciadas, contendo o genótipo do indivíduo que se pretende tratar (autólogas), que se possam direccionar para a reconstrução dos tecidos. Aos processos que têm sido testados neste sentido tem sido dada a denominação de reprogramação.

O desiderato da reprogramação é importante do ponto de vista da verificação da teoria celular, que implicitamente reconhece a qualquer células de um determinado organismo a capacidade de originar um novo organismo idêntico ao primeiro, desde que lhe sejam concedidas as condições adequadas, mas também é importante porque permitirá a obtenção de uma fonte inesgotável de células pluripotentes, que seriam derivadas de células do paciente que delas necessitaria, obviando os problemas associados à transplantação heteróloga, sobretudo relacionada com a compatibilidade imunológica.

Encontram-se em estudo três possíveis vias para a indução da reprogramação nuclear: 1) a utilização de microambientes que ocorrem naturalmente nos ovócitos (por transferência nuclear somática; 2) o uso de fusões entre células somáticas e células estaminais e 3) a aplicação de extractos de ovócitos, células estaminais ou outras para desdiferenciar as células somáticas.


A primeira via tem sido a mais explorada, e é denominada vulgarmente por “clonagem para fins terapêuticos”. No entanto as outras vias estão também a ser testadas. Várias experiências verificaram que a fusão de células estaminais embrionárias com células somáticas permite a reprogramação, verificando-se por exemplo a expressão do gene Oct4 (um dos genes que , quando expresso, indica o estado de desdiferenciação das células) nas linhas celulares assim obtidas. No entanto, será necessário retirar-se o núcleo das células estaminais após a reprogramação, por ser muito provável a impossibilidade de serem utilizáveis células com dois genomas (Dominic Ambrosi & Theodore Rasmussen, 2005).

     

Imagem: Mário de Sousa

Recentemente foi relatada fusão de uma célula estaminal embrionária humana com uma célula da pele (Kevin Eggan 2005). O produto desta fusão comportou-se aparentemente como uma célula estaminal embrionária. Este resultado permite supor que será possível a obtenção de linhas celulares desenhadas de acordo com as necessidades individuais sem a necessidade de se obter um blastocisto, mas simplesmente reprogramando células da pele dos doentes. No entanto as células obtidas desta forma têm o dobro do conteúdo em DNA e esta questão terá que ser previamente resolvida antes de se testar a validade das linhas celulares desenvolvidas através desta técnica.

Em alguns vertebrados, como as salamandras, células estaminais novas são criadas através de um processo de desdiferenciação, no qual as células já diferenciadas podem reverter o seu desenvolvimento e tornarem-se de novo pluripotentes. Shuibing Chen e colaboradores (2004) referem que descobriram um derivado da reversina (2,6 purina substituído), composto inicialmente identificado nas células da salamandra, que induz a desdiferenciação de células miogénicas em células mesenquimatosas multipotentes, as quais se podem diferenciar em células adiposas e do osso. Anoop Kumar e colaboradores (2004) desenvolveram estudos onde se verificou que a desdiferenciação e plasticidade de miofibras, quer em salamandras, quer em ratos depende directamente da expressão do homeogene Msx1. Kaoru Mitsui e colaboradores (2003) verificaram que a expressão de uma homeoproteína “Nanog” é capaz de manter a multiplicação celular indiferenciada, verificando ainda que as células deficientes nesta proteína perdem a pluripotencialidade e diferenciam-se em linhas endodérmicas extra-embrionárias.

Os estudos acima brevemente relatados indiciam que, com um esforço concertado, se poderá, a seu tempo, encontrar vias para controlar o processo de reprogramação em células somáticas adultas. Embora “escondido” pelo “barulho” da clonagem, este é realmente um campo de investigação formidável e excitante, com implicações importantes quer para a Biologia, quer para as suas aplicações.

Este texto deriva em parte do “Relatório sobre a Clonagem Humana” (2005) associado ao Parecer nº 48 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, do qual fui co-autor. Por economia de espaço, não se colocam aqui a bibliografia referida, que pode ser encontrada no final do “Relatório”, bem como um glossário dos termos utilizados.

Ver: http://www.cnecv.gov.pt


Pedro Fevereiro

Pedro Fevereiro
Especialista em Biotecnologia

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Última actualização: 15.05.2008